sábado, 18 de outubro de 2008

Entrevista para o Artigo Interstícios Urbanos

Entrevista para a Comciência para o Artigo Interstícios Urbanos
- Quais os sentidos mobilizados quando falamos em vazio no campo da arquitetura?
Perguntas de Marina Mezzacapa, respostas Clara Miranda
O primeiro sentido que emerge imediatamente à lembrança é aquele do princípio essencial do espaço interior na arquitetura, que em suma concerne ao vazio arquitetônico, ao envólucro como formador de espaço que envolve o homem, mesmo em dialética com o sítio e a paisagem. Este que se define nos movimentos modernos da arquitetura a partir de teóricos como August Schmarsow, Sigfried Giedion, Bruno Zevi e do arquiteto Frank Lloyd Wright e ainda dos manifestos do The Stijl. Em Wright, o espaço interno não é rígido para condiciona a existência. Para ele, “o cômodo fechado não é a expressão essencial da arquitetura”. Este espaço forma um meio de contato com a realidade. O espaço tem que possibilitar a sua definição pelo indivíduo que o usufrui. A concepção de Wright de espaço como um campo de forças, não como uma relação de grandezas, articula a realidade natural e a humana. Wright compreende a arquitetura como resultado da ação do sujeito e não simplesmente como produção de objetos. Neste sentido, pode-se, ainda, agregar a significação de abrigo veiculada pelos fenomenologistas, que não vem ao caso discutir aqui.
Há, inclusive, como desdobramento da posição do modernismo, todo um debate inacabado sobre o esvaziamento do espaço público face influência mútua entre: o projeto moderno funcionalista (entendido como estilo mesmo) que resultou freqüentemente numa paisagem de objetos isolados; e o espaço disciplinar - que cria meios de confinamento nos quais o indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: a família, a escola, a caserna, a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão como diz Gilles Deleuze. As transformações da esfera pública estendendo-se do espaço físico à mídia temática e virtual reforçam o esvaziamento do espaço público. As chamadas “tiranias da intimidade” que condicionam o “declínio do homem público” (Richard Senneth) se agrava na condição de refém que passa a obcecar a sociedade que firma a sua prioridade no problema da segurança em vez da liberdade (Jean Baudrillard). O medo do espaço amplo externo (agorafobia) burguês se dirige, no caso do homem contemporâneo, ao espaço vazio, aos interstícios, instalando, então espaços contenedores controlados por uma variedade de dispositivos de segurança. Os interstícios, os espaços abertos e os contenedores (aparelhos de captura em Deleuze e Felix Guattari) este homem “telespectador” usufrui enquadrados, numa distância a-crítica, anéstetica.
O segundo sentido advém do valor de contraposição ou compensação que o espaço vazio adquire no processo de urbanização cumulativa, densa, extensiva e generalizada ou ainda, considerando a dominância contemporânea da paisagem de fluxos e dos espaços de passagem (espaços que resistem ou impedem a experiência e a habitabilidade). Esta noção foi divulgada a partir do Congresso do UIA de 1996, realizado em Barcelona, denominado “Presentes y futuros, arquitetura em La ciudades”. Havia neste congresso um ponto denominado “terrain vague”, denominados como “forma da ausência” por Ignasi Solá Morales. Terrain vague em espanhol é “terreno baldio”, em português foi utilizado o termo vazio urbano, velho conhecido do estoque de terra para especulação fundiária.
Terra vaga é bom termo, pois, como, alude Solá Morales a ambigüidade do termo: que significa vazio, mas também, impreciso, indeterminado, errante, torna-se útil para designar uma categoria urbana cujos objetos e territórios participam da condição de crise de uso, sendo improdutivos, obsoletos, sem uma perspectiva de futuro. Os vazios urbanos constituem-se assim o reverso dos espaços globalizados concentradores de tecnologia para informação de alto-nível, são espaços rarefeitos, lentos e opacos. Mas, estes vazios urbanos são passíveis de proporcionar experiência, pois esta não pode prescindir do tempo lento.
O cineasta Win Wenders diz que por que as cidades estão lotadas, “varreram o essencial”, e apela aos arquitetos para não projetem apenas edifícios, mas criem também espaços livres, preservem o vazio, que não obstruam a vista, para o “nosso descanso”. Assim, torna-se um tema apaixonante, o vazio é uma condição existencial do mesmo modo que os objetos que manufaturamos e imediatamente passamos a imprescindir deles.

- Historicamente, o conceito de vazio na arquitetura passou por transformações?
Acho que na resposta anterior pontuei um pouco desta evolução desde o movimento moderno ao contemporâneo. É uma história sob um ponto de vista. Giedion traça um interessante panorama de três idades do espaço: a antiguidade com a predominância dos espaços exteriores abertos (um vasto vazio muitas vezes ancestral), o período entre o tardo-romano e a industrialização em que predominam espaços internos sob o domo, e a partir dali a dialética entre exterior e interior, possibilitada pela interação entre técnicas mecanizadas e uma nova imaginação coletiva. Contudo, desde a metrópole, a multidão e agora, a mega-cidade o vazio se torna uma matéria rara, que incorpora não apenas o sentido físico e econômico, mas de lugar de memória, existencial, estético, essencial ao repouso, à desaceleração, à síncope do tempo (aquele que então devemos mudar segundo Giorgio Agamben).
- Pensando na questão da dinâmica urbana, como se formam os vazios urbanos? Quais são os exemplos mais evidentes desse tipo de espaço?
Vou colocar em termos de uma experiência pessoal. Vitória é uma cidade que não cresceu quase nada além dos limites do sítio fundador até o início dos anos 1920, apenas nos anos 1970 atingiu 7 km de raio além do centro principal, nos anos 2000 atinge 15 km. Porém, neste processo, vários tipos de ações e políticas valorizaram áreas em detrimento de outras, surgindo então vazios intersticiais. Os conjuntos habitacionais do período da ditadura militar foram pródigos em criarem interstícios vazios para posterior valorização. A fuga do centro principal para novos bairros litorâneos criou outra espécie de vazio pela obsolescência, com a crise de uso e de significado do centro principal. No momento, vejo com preocupação, a carência de vazios urbanos em Vitória. Pois, a necessidade de densificação devido crescimento urbano acelerado, além de um ímpeto construtivo (quase volúpia) que assolam governantes e incorporadores, tende a encher o espaço de construções (muitas vãs) que tendem a ficar desocupadas, sobretudo, os edifícios do setor privado. Muitos destes conjuntos construídos podem tornar-se um obstáculo não só na paisagem mas entulho da vida pública local, obstruindo a circulação social com os muros cegos e extensos (dos muitíssimos condomínios em construção), sem olhos que vigiem a rua e a nossa passagem e sem aberturas que possibilitem fluxos coletivos nos locais.( Aí eu fiquei melosa, exagerada, ih!!!)
- Que dilemas e discussões os vazios urbanos suscitam?
A densificação é própria do fenômeno concentrador, infra-estrutural, técnico e social da cidade, que funde tempo com espaço, facilitando determinadas operações, sobretudo, as comunicações. Em contrapartida, há o imperativo de dimensionamento da gestão pública, que se estabelece no controle da ocupação urbana, proporcionando certa rarefação espacial em áreas seletas. Em que pese a especulação fundiária predatória mediante os vazios urbanos, no entanto, impõe-se a necessidade de estoque público de espaços abertos livres.
- Na concepção de projetos arquitetônicos e urbanísticos, qual o papel do vazio?
Penso que Win Wenders acerta em solicitar que projetemos também espaços abertos, que se argumente contra a necessidade de preencher o vazio existencial, construtivo e estético ocupando espaço demasiadamente. O vazio urbano é componente do meio ambiente natural restante e também da memória coletiva, em alguns casos, deve compor um estoque público para equipamentos coletivos. Contudo, o fator de compensação em relação a densidade é fundamental.
- Como a arquitetura moderna se apropriou desse conceito e de seus desdobramentos?
Penso que a arquitetura moderna da primeira geração: Mies, Le Corbusier, Wright, e também da brasileira: Niemeyer, Reidy, Rino Levi, Vilanova Artigas sabiam muito bem dialogar com a paisagem, criando vazios em torno (e dentro) de suas obras. Porém, os desdobramentos foram nefastos, quando os procedimentos funcionalistas (que Aldo Rossi chama de ingênuo) se estereotiparam, edifícios se construíram como objetos anônimos em fundos extensos, desreferenciando usuários, desqualificando o ambiente. Nesses estereótipos o vazio torna-se o resto não fruto do desenho. Há exemplos daqueles arquitetos aonde o ambiente resulta inóspito para uso, acho que o Memorial da América Latina é um pouco assim, mesmo com uma boa coleção de edifícios, com o atenuante de que o entorno não oferecia muitos elementos para diálogo.
- No Brasil, quais projetos são ícones quando pensamos na questão do vazio?
A Praça dos Três Poderes de Brasília, com todas as críticas, é uma obra de arte. Clarisse Lispector em uma crônica parece se sentir nua lá, disse que deixaria o cabelo crescer para usufruir daquele espaço. Acho que os maiores vazios de Brasília combinam bem com a vegetação retorcida do Cerrado e chão vermelho da época de seca. Mas, é fato que a multidão esperada para a praça ainda não teve seu tempo. O projeto do Parque do Flamengo, com uma de suas motivações no emolduramento da paisagem carioca, afirma a cada vez que se passa por ele, que esta não será nunca uma paisagem inútil. “A beleza nunca é desperdiçada”, como disse Arnaldo Antunes referindo-se a outra paisagem memorável. Quando Frank Gehry se recusou a fazer o projeto do Guggenheim no Rio, acho que era nisso que apostava, em não obstruir esta paisagem.

Artigo da Marina Mezzacapa In:
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&tipo=dossie&edicao=38

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